segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Campo de Ourique Simone de Beauvoir


A Luta Continua....

O QUE RESTOU DE SARTRE E SIMONE
A mítica Paris do casal-símbolo da liberdade é revisitada em álbum de fotos na França Paulo Roberto Pires 02.03.2002fragmento extraído do Caderno Idéias Jornal do Brasil (versão impressa)

Sentados num banco de pedra no Jardim do Carroussel, praça diante da entrada principal do Louvre onde hoje se erguem as polêmicas pirâmides de vidro, Jean-Paul-Charles-Aymard Sartre e Simone-Ernestine-Lucie-Marie Bertrand de Beauvoir decidiram firmar, em 1929, um contrato de dois anos. Quem propôs foi ele, aos 23 anos um brilhante e indisciplinado aluno da École Normale Superieure, passagem obrigatória de dez entre dez grandes intelectuais franceses. Segundo ela, que tinha 21 e também pleiteava uma agrégation em filosofia, a proposta era clara: "Entre nós, trata-se de um amor necessário: convém que conheçamos também amores contingentes." Se esta cena chega até hoje com tamanha riqueza de detalhes é porque seus protagonistas assim o desejaram. E, mais do que isso, deliberadamente fizeram de suas vidas uma daquelas narrativas fundadoras: Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, sinônimos de intelectual, existencialismo, engajamento, liberdade e liberação.

Nesta história, hoje é impossível — e sobretudo inútil — separar obra de vida, mito de verdade, existência de aparência. Sartre & Simone são quase uma entidade e, por isso mesmo, só podem ser medidos pelas escalas da paixão, da adoração ao ódio com paradas obrigatórias na herança de suas obras, esta concreta, para a filosofia contemporânea, a militância socialista e o feminismo. Num destes extremos está Le Paris de Jean-Paul Sartre et Simone de Beauvoir, álbum luxuoso de Jean-Luc Moreau (texto) e Bruno Barbey (fotos) que refaz a geografia dos dois na cidade em que "nasceram, viveram e morreram".
No outro, o acerto de contas em que Bernard-Henri Lévy faz no ensaio O Século de Sartre. No centro de tudo, se é que é possível localizá-lo, o Sartre "ele mesmo", livre de comentadores, na primeira versão brasileira completa da Crítica da Razão Dialética, a mais alentada obra de sua maturidade, publicada originalmente em 1960.

O "amor necessário" que uniu por 50 anos Sartre e Simone era, na verdade um ménage-à-trois. Não pelos incontáveis amantes que de comum acordo freqüentaram as vidas de um e de outro até o fim. O terceiro e permanente vértice do triângulo foi, sem força de retórica, Paris. E um perímetro bem definido da cidade que mais concentra fantasmas literários em todo o mundo: seus domínios abrangiam um jardim (o Luxemburgo) e algumas dezenas de ruas em tomo dele, dos bairros de Saint-Germain-des-Prés a Montparnasse. "Se considero a linha geral de minha vida, ela me impressiona por sua continuidade", escreve Simone no último volume de suas memórias, Balanço Final (Tout compte fait). "Eu nasci, eu vivi em Paris: mesmo nos anos passados em Marselha, em Rouen, continuei ancorada lá." Partindo destas e de outras anotações — principalmente das memórias da autora de O Segundo Sexo, mais generosa em confissões —, Jean-Luc Moreau montou os itinerários visuais de Le Paris de Jean-Paul Sartre et Simone de Beauvoir.
O livro das Éditions du Chêne faz uma montagem da Paris de ontem e de hoje para mostrar como o primeiro "casamento aberto" da história foi fiel em sua obsessão pela cidade. As imagens da cidade nas décadas de 20 e 30, "anos de aprendizagem" de um e de outro, vêm em sua maioria da insuperável objetiva de André Kertész em belos detalhes da vida em Montparnasse como uma cena de rua, uma chaminé ou o flagrante jornalístico de uma lavanderia. São as imagens-cenário do livro, sempre comentadas pelas tomadas em cor, contemporâneas, de Bruno Barbey. Cliques anônimos dão conta dos personagens na época, também retratados, como não poderia deixar de ser, em seus portraits clássicos de Henri Cartier-Bresson.

Entre bibliotecas, livrarias, cafés e cabarés, os jovens Sartre e Simone começam a tecer os laços, que se mostrariam indiscerníveis, entre vidas e obras. Ao lembrar 1946, quando passou a dividir com a mãe o famoso apartamento da Rue Bonaparte — de onde via a igreja de Saint-Germain, o café Les Deux Magots e a praça que foi rebatizada em sua homenagem e de Simone — Sartre dá a medida da importância da cidade em sua vida: "Até então sempre vivi no hotel, trabalhei no café, comi no restaurante e isso era muito importante para mim, o fato de não ter nada. Era uma forma de saúde pessoal; eu teria me sentido perdido — como se sentia Mathieu — se tivesse tido um apartamento meu, com móveis e objetos pessoais."

A poucos metros de seu balcão da Bonaparte; estavam as caves de "má reputação" para a provinciana Paris dos anos 40, onde o existencialismo se difundia como uma moda e o jazz, via bebop, começava a invadir a cidade. Eram as noites em que o Sartre pianista amador atravessava ao lado de Boris Vian, o romancista, compositor e trompetista que fez uma deliciosa trilha sonora destes anos loucos em músicas como Je suis snob ou Fais-mal à moi, Johnny. Também ali, cercado por um entourage que ia de Albert Camus (antes da briga que os separou para sempre) a Juliette Greco, articulou a fundação da revista Les Temps Modernes, um dos marcos da radical politização de sua atuação pública dos anos 50 aos 70.

O casal sempre morou em apartamentos separados. Simone, inicialmente, vivia num studio na Rue de la Bûcherie, rua onde funciona hoje a livraria Shakespeare & Company (ponto intelectual da Paris de Hemingway e James Joyce), com generosa vista para a Notre Dame, o que impressionou muito seu "marido" americano, o Nelson Algren de O Homem do Braço de Ouro. Em seus últimos anos, ela voltou para Montparnasse onde nascera, ocupando um studio duplex com vista para o belo cemitério onde seria enterrada no mesmo túmulo de Sartre. O filósofo, por sua vez, depois de ter o apartamento atingido por duas bombas, também transferiu-se em 1962 para as imediações do cemitério.

Faziam dos restaurantes clássicos da região seu refeitório. Eram figurinhas fáceis no Dôme e sobretudo no La Coupole, cenário de uma das melhores fotografias do livro, de autoria do próprio Bruno Barbey: em 1969, já marcados pela idade, dividem uma mesa e um jornal como pacatos velhinhos parisienses. Difícil acreditar que são os mesmo que, depois das revoltas de maio — "68 chegou um pouco tarde para mim", dizia um Sartre alquebrado — passam a militar na esquerda radical, em manifestações de apoio a operários e sindicalistas. Depois da morte de Sartre, em 1980, Simone não perdeu a verve e é notável sua fotografia, altiva e sorridente, numa barulhenta manifestação pela legalização do aborto.

Em tudo e por tudo, Le Paris de Jean-Paul Sartre et Simone de Beauvoir mitifica ostensivamente o casal. Reflete, ainda que de forma light e charmosa, o peso histórico que um intelectual como Bernard-Henri Lévy suporta com dificuldade. No dia 19 de abril de 1980, quando tinha 30 anos "e um bom lote de entusiasmos, de ilusões, de decepções", Lévy estava entre as 50 mil pessoas que foram ao cemitério de Montparnasse se despedir de Sartre. Como o diretor Claude Lanzmann disse a Simone, com quem dividiu o comitê da Temps Modernes (que edita até hoje) e um casamento bem à la Beauvoir, o enterro foi "a última manifestação de 68". Como nas revoltas dos "sessentaoitistas", Lévy estava lá movido por sentimentos vagos, sem saber muito bem por que: "pouco importava, ficou claro, saber se eu havia amado ou detestado Sartre, ou ainda, se o havia amado apesar de o detestar, ou mesmo o inverso. Contavam apenas aqueles sentimentos controversos que ele inspirava, em sua época e que, sobretudo, insuflava."
Paulo Roberto Pires é editor de cultura do site nominimo.ibest.com.br

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